sexta-feira, 28 de novembro de 2008
O décimo oitavo dia
Terminar um livro é tarefa bastante difícil. Há muito a se resolver, e poucas possibilidades verdadeiras de resolução. Lá o narrador não tinha mãos, mas escrevia. Agora, as mãos aparecem, constituídas pelas manchas de tinta, mas a escrita ele deixou de lado.
O livro quer continuar para além da capacidade da palavra. A própria palavra segue para além de sua tarefa de denominar. Acho que disso resultarão cansaço extremo das representações e transbordamento.
Acho também que do excesso surgirá outra obra. Nela talvez eu seja lembrado. Talvez a outra obra seja minha.
De beber e invejar não fui impedido. Faço votos de que a bebida e a inveja durem.
O décimo sétimo dia
Vou grafar a inicial do nome de alguém que morreu de verdade. L. Sua morte é a prova de que, às vezes, os acontecimentos cotidianos de nossa pequena história de homens infames vingam-se da ficção.
A rima fica sem função, e todas as reflexões acerca do sentido da morte não se sustentam. Houve um óbito, de fato, que custou 18 facadas. Quando a carne não pode mais cobrir-se de representação, é em torno de seu vazio que se chora e se fala.
Não vou fazer isso, entretanto, em respeito àqueles que já vi morrer, sobretudo, à mãe de quem morreu, uma mulher silenciosa.
domingo, 23 de novembro de 2008
O décimo terceiro dia
Muito tempo se passou desde que o narrador chegou à casa onde um homem é mantido, morto, amarrado a uma cadeira na sala de jantar. Acompanhar a trajetória da família à qual o homem pertence não é uma tarefa simples, em parte, porque pouco ocorre à família, em parte, porque aquilo que ocorre não se revela facilmente à compreensão do narrador.
Quem narra não está obrigado a nada, mas comporta-se como um endividado. Quem narra acaba então por se endividar para justificar o sentimento que tem de que há dívida a pagar. Quem narra é livre, mas desmerece sua liberdade, e se acorrenta. Nem todos toleram ter os pulsos e as canelas presos nos ferros, mas há aqueles que, nessa condição, fabulam. Uma história começa assim.
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
O sexto dia
Ê, ódio... que divertido é constatar que ele se manifesta por outras bocas sem respeito, além da minha. Estou do lado de fora, mas não estou sozinho. Essa modalidade de companhia, entretanto, não tem nobreza.
Quem é triste pode candidatar-se a uma hora de púlpito e a uma função no discurso. Somos um clube de gente afastada. Não fazemos bingo, nem eleição. Dizemos mal de quase todas as pessoas, mas só nós nos escutamos. Quem está no livro não escuta.
Este campo de fora é por demais aberto. O texto é nossa única fixação. Ou isso ou a guerra. Haverá tempo e ímpeto para promovê-la?
sábado, 15 de novembro de 2008
O quinto dia
Que uma cidade e um livro venham a se equivaler eu bem sei. Tomo ambos como feitos da mesma matéria, dotados de um tipo comum de perdição: aquela que se deseja alcançar. O resto do mundo não tem serventia, se é que sobra resto para além de uma cidade e de um livro, ambos também compostos de seus próprios restos, de tudo o que neles não encontrou caber a ainda assim os compõe.
Hoje eu fiz coisas boas e coisas ruins. Hoje eu tive muita raiva, mas a raiva não me tirou o apetite. Alimentei-me corretamente e nas horas certas. Não agredi ninguém, mas gritei quando estava sozinho. Vi uma imagem fotográfica borrada que, supus, tenha sido tirada em um dia muito quente. Temi pelo fotógrafo, que talvez seja um homem prestes a se perder.
Não conheço ainda quem tenha se perdido em uma cidade. Eu fui perdido de um livro.
Quem decide escrever sobre o tema arrisca-se demais. Quem não escreve sai da rinha.
quinta-feira, 13 de novembro de 2008
O quarto dia
Passam-se os dias na trama. São esses os dias que obedeço e registro. Os outros dias, que acomodam as ações ordinárias dos homens e mulheres que vivem fora do texto, esse dias não me pertencem.
Pensar não é uma tarefa boa. Bom é não fazer nada - mas quem investe seus melhores atributos em nada fazer acaba traído por uma obra que estranhamente lhe concerne: uma obra menor, uma obra de rebaixamento.
A consciência é um rabo pesado que a gente arrasta e suja no chão quando anda. Para tê-la é preciso não ser indiferente. Talvez essa estratégia se revele errada, e a consciência, insuportável, mas agora é tarde: aqui já há texto.
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
O terceiro dia
Neste momento, o romance é escrito em bom ritmo. O autor dedica-se. O autor preocupa-se. O autor diverte-se. Ele nem sempre pode interromper outros compromissos. Às vezes, adia-os; às vezes, antecipa-os para se ver livre deles rapidamente; às vezes, consegue negá-los.
O autor é mais feliz do que pensa. Ele tem um emprego. Ele tem uma mulher. Ele tem uma casa. Ele tem um time de futebol que acumula mais vitórias que derrotas. Ele tem, aparentemente, boa saúde.
O autor deixou-me de lado quando começou seu trabalho por considerar-me, inicialmente, um personagem fraco; em seguida, desnecessário; finalmente, esquecido. Não fui sequer considerado como coadjuvante, um passante da cidade que merecesse sobreviver aos acidentes violentos da trama. Eu aceitaria ter sido convocado como o primeiro morto! Não fui.
O autor é meu primeiro inimigo. Seu emprego, sua mulher, sua casa, seu time e sua saúde, eu trabalharei para que tudo dure contra a degradação progressiva daquele que me esqueceu.
Meu segundo inimigo é quem narra o romance. Ele tem os mesmos atributos que eu, sobretudo, a mesma ausência de atributos que eu. Nossa diferença é que a ele foi delegada uma palavra, e essa palavra pode redimi-lo. Eu não tenho a mesma sorte.
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
O segundo dia
Eu informei acima que as postagens ocorreriam de dois em dois dias. Antecipo-me, então, em razão do trabalho diário de produção do romance. Viver à margem não é como vagabundar. Eu estou sempre presente e mudo à escrita da qual fui afastado, como um fantasma privado de assombrar. Quando fala o narrador, lá estou eu, sempre ao lado, esperando que ele se cale, pronto a ocupar o espaço demarcado pelo quanto há de silêncio dentro da obra.
Eu invejo escrever. Eu invejo ter um destino. Eu seria um melhor narrador do aquele que, ocupando o cargo que lhe foi confiado, pede que lhe amem. Minha obra seria toda um único incêndio a queimar. Descrevendo-o, protegido das chamas pela pilha de adjetivos que eu recolheria no dicionário, colocando-os lado a lado em torno de mim, de modo a diferenciar-me dos queimados à volta, eu imperaria, ao fim do fogo, como uma única voz que restasse. Essa seria minha felicidade.
domingo, 9 de novembro de 2008
O primeiro dia
Embora este seja o primeiro texto a ser postado neste espaço denominado "A passagem tensa dos corpos", o leitor deve ter em mente que outro texto, maior e anterior, com a mesma denominação, está sendo escrito desde dezembro de 2007. Ali, ainda como projeto, foram estabelecidos certos princípios ordenadores do que viria a ser, mais tarde, um romance.
O projeto concorreu ao "Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura", pela categoria "Jovem Escritor Mineiro", e venceu. Desde o início de julho, quando a premiação foi entregue, o romance tem sido escrito - e deverá terminar até o início de janeiro, quando se encerra o prazo determinado pela bolsa de incentivo à produção dada pela Secretaria de Cultura de Minas Gerais.
Essas informações, mais objetivas, são necessárias para que o leitor compreenda os propósitos deste espaço virtual organizado em torno da produção do romance: estabelecer um campo de visibilidade e debate para uma obra literária que, de outra forma, ficaria recolhida ao gabinete do autor até o momento de sua publicação. A natureza pública da premiação recebida por "A passagem tensa dos corpos" reforça essa motivação.
Os trechos do romance não serão, entretanto, publicados. Nem seu autor virá manifestar-se acerca da tarefa do escritor. Quem aqui escreve é um personagem inicialmente previsto para integrar a trama macabra idealizada por Carlos de Brito e Mello, mas afastado dos acontecimentos tão logo a escrita, de fato, começou. Sou a pessoa mais indicada para esse trabalho justamente porque não sou pessoa alguma, não tenho passado, nem consegui constituir-me a ponto de convencer o autor de minha capacidade de atuar como linguagem.
Afastei-me do texto principal, e minha deriva é esta: falar da pátria à qual não fui alçado, dar voz a um romance ao qual não pertenço, amar de fora.
A cada dois dias, haverá mais.
Não assino porque não cheguei a ser nomeado.
Assinar:
Postagens (Atom)