quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Justo agora

Na condição de personagem destituído de narrativa, fico maravilhado com o mundo onde os homens e mulheres vivem. Eles não dependem de narrativa. Vivem e pronto, e assim está bom.

Mas há quem, dentro desse mesmo mundo, escolhe narrar, sei lá porque, e o faz da maneira que deseja.

Uma das formas de se começar uma narrativa é ligar uma lanterna dentro de uma sala escura.

domingo, 26 de julho de 2009

Minutos mais tarde

O lugar que deixo, é bom esclarecer, dá para o texto, dá para o nada e dá para a vida ordinária.


Para o texto não posso ir sem o desejo do autor. O nada é de onde vim, e sua matéria é que dá recheio à minha barriga. Resta-me, então, a terceira via.

A partir da metade de um ano inteiro

O melhor a fazer é ir embora.


Ir embora é uma forma clássica de se encerrar uma narrativa.


Um herói deve sempre, ao final do cumprimento de suas obrigações, ir embora.


Não fui herói de nada, embora não me faltassem qualidades de herói, como a qualidade de ser só, como convém a todo herói.


Mas agora, que começo a me repetir quanto às lamentações, percebo que devo ir embora deste lugar sem graça. Para um personagem excluído, olhar o texto de fora é muito ruim.


Tenho de advertir, entretanto, que nenhuma narrativa será encerrada com minha partida, uma vez que não há - nem nunca houve - narrativa minha. O que quer que ocorra, a partir de agora, chamaremos de sorte. Se der errado, azar.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Há quase um mês, logo depois, então

Uma das poucas vantagens que tenho por não pertencer a nenhuma obra é poder fazer o que quiser, incluindo beber toda a água disponível, beber a água indisponível, depois engasgar, depois cuspir e então confessar que tudo era mentira: a água, o engasgo e o cuspe.

Há quase um mês, logo depois

Toma-se, com frequência, por boa representação aquela que mais justamente se identifica com à realidade à qual ela responde. Logo, uma representação estaria mais próxima objeto representado quanto mais elementos desse objeto ela reproduzisse em sua formulação.

Há engano quanto a essa crença.

Eu estou mais próximo daquilo que se faz representar por mim exatamente porque sou mais fajuto. Sou tão fajuto que nem saberia dizer o que, de fato, represento. Talvez eu nada represente. Talvez eu apenas fique por aí, assim, como fica uma palavra que ninguém ouviu pronunciar.

Há quase um mês

Eu bebo água, mas não por meio e uso de um copo de vidro que retiro do escorredor.

O vidro eu não consigo apanhar, pois está disponível apenas aos personagens que se comportam adequadamente e que vão à cozinha saciar sua sede toda vez que o autor para lá os dirige.

Se alguém está ainda a escrever não é por mim, nem com vistas ao meu destino. Eu continuo solto. Tenho falta de autor. Permaneci fora de todo o seu trabalho, e, quando vi que terminava seu romance, fiquei muito triste por não pertencer àquilo que fora elaborado com tanto desejo.

Ninguém me dirige, ninguém me leva até a cozinha, ninguém me faz beber água como parte integrante de uma narrativa em curso. Não há nada pior do que não ser desejado.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Quinquagésimo nono dia, minutos mais tarde

Pode-se alegar que o tempo passou demais, e que a escrita não o tomou como regra. Pode-se alegar também que a passagem desse tempo danificou certo ritmo dos surgimentos de imagem e texto. Pode-se, finalmente, alegar que a obra que estava sendo produzida, e da qual eu fora excluído, está terminada, e que não existe mais razão para minhas queixas.

Essas alegações não têm a menor importância. De um modo ou de outro, a escrita sempre retorna.