terça-feira, 30 de junho de 2009

Há quase um mês, logo depois, então

Uma das poucas vantagens que tenho por não pertencer a nenhuma obra é poder fazer o que quiser, incluindo beber toda a água disponível, beber a água indisponível, depois engasgar, depois cuspir e então confessar que tudo era mentira: a água, o engasgo e o cuspe.

Há quase um mês, logo depois

Toma-se, com frequência, por boa representação aquela que mais justamente se identifica com à realidade à qual ela responde. Logo, uma representação estaria mais próxima objeto representado quanto mais elementos desse objeto ela reproduzisse em sua formulação.

Há engano quanto a essa crença.

Eu estou mais próximo daquilo que se faz representar por mim exatamente porque sou mais fajuto. Sou tão fajuto que nem saberia dizer o que, de fato, represento. Talvez eu nada represente. Talvez eu apenas fique por aí, assim, como fica uma palavra que ninguém ouviu pronunciar.

Há quase um mês

Eu bebo água, mas não por meio e uso de um copo de vidro que retiro do escorredor.

O vidro eu não consigo apanhar, pois está disponível apenas aos personagens que se comportam adequadamente e que vão à cozinha saciar sua sede toda vez que o autor para lá os dirige.

Se alguém está ainda a escrever não é por mim, nem com vistas ao meu destino. Eu continuo solto. Tenho falta de autor. Permaneci fora de todo o seu trabalho, e, quando vi que terminava seu romance, fiquei muito triste por não pertencer àquilo que fora elaborado com tanto desejo.

Ninguém me dirige, ninguém me leva até a cozinha, ninguém me faz beber água como parte integrante de uma narrativa em curso. Não há nada pior do que não ser desejado.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Quinquagésimo nono dia, minutos mais tarde

Pode-se alegar que o tempo passou demais, e que a escrita não o tomou como regra. Pode-se alegar também que a passagem desse tempo danificou certo ritmo dos surgimentos de imagem e texto. Pode-se, finalmente, alegar que a obra que estava sendo produzida, e da qual eu fora excluído, está terminada, e que não existe mais razão para minhas queixas.

Essas alegações não têm a menor importância. De um modo ou de outro, a escrita sempre retorna.

Quinquagésimo nono dia

Não sou abençoado com o atributo da preguiça, daí não poder atribuir a ela minha ausência no espaço da escrita. É preciso que se compreenda que permanecer ausente é minha maior realização e trabalho, e que apenas quando fujo às minhas atribuições é que surjo.

Meu rancor não diminuiu, mas não tenho pressa para a vingança.